Decameron: a humanidade em contos bem-humorados



Escrito no século XIV por Giovanni Boccaccio, Decameron, ou Decamerão, dependendo da tradução, é um livro que reúne 100 novelas (ou contos) com personagens italianos que vivem situações eróticas, aplicam golpes, dão lições em mentirosos e satirizam o comportamento de religiosos. O autor usar o horror da Peste Negra como justificativa para reunir dez jovens em um castelo afastado da cidade e, assim, iniciar as “jornadas” diárias, em que cada amigo deve contar uma história.

Na introdução de Decameron, é descrita a situação em Florença com a chegada da epidemia, dos sintomas ao comportamento das pessoas, além do que se via nas ruas com o passar dos dias. Dali, parte-se para uma igreja, um dos lugares de refúgio do povo, onde sete amigas de origem abastada decidem se isolar daquela situação, e convidam três rapazes para acompanhá-las. Nesse escapismo à tragédia que assolava a Europa, a cada dia um é escolhido como o novo rei ou a nova rainha, que determina, entre outras coisas, o tema da jornada do dia, utilizando o tempo livre para se divertir com os relatos dos amigos.

Na linda edição que eu li, do Círculo do Livro de 1990 e com tradução de Torrieri Guimarães, são 580 páginas que se lê sem cansaço. Pelo contrário: das histórias trágicas às mais ingênuas, estão ali situações universais, fraquezas e astúcias de personagens que ainda estariam por aí: as tramoias que às vezes dão certo, mas outras que dão errado porque a vítima se mostra mais esperta do que outro; acertos de casamento; a ingenuidade que está tanto no simplório como no homem instruído; e um constante “clamor do sexo”, com situações que envolvem adolescentes, adultos de todas as idades, libertinos e religiosos. No final, quase todos felizes, como se tivessem cumprido a tarefa de mais um dia demonstrar o que é ser humano, capaz de passar por cima de regras e da tradição em nome do instinto.

Giovanne Bocaccio (1313-1375) viveu na região da Toscana, e sua obra foi escrita no dialeto local. Decamerone, no original, vem do grego “deca hemeron”, ou dez jornadas. Ao retratar as mulheres, muitas vezes, em pé de igualdade com os homens quando o assunto é o desejo carnal, o livro rompe com a moral vigente até então, na Idade Média, período da História que termina justamente com a Peste Negra.  Por esse e outros aspectos, é considerado pelos estudiosos como o primeiro livro realista.

Especula-se que algumas histórias reunidas por Boccaccio já faziam parte da tradição oral, outras são apontadas como adaptações de antigos escritos. Tanto que algumas situações nos parecem familiar, como a novela em que dois amigos fazem um trato que obriga aquele que morrer primeiro a aparecer para o outro e contar o que viu do lado de lá. A graça está em como o autor termina essa e outras histórias, que podem ter sido contadas antes e que muitas vezes foram adaptadas depois, por diversos autores.

"Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano (...) de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença (...), sobreveio a mortífera pestilência", narra Boccaccio. A epidemia levou muitos, mas Masetto, Andreuccio e outros personagens passaram a perna em homens, mulheres e na dona Morte.

(ilustração da abertura: Lyudmyla Korzh-Radko)




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